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Dona Sol


Naquela época não muito distante (talvez tenha acontecido agorinha), todos os dias da semana acordava às quatro e trinta da manhã. Acordar na escuridão de um dia que ainda não amanheceu é diferente de acordar às seis não só pelo horário. Às seis, o dia parece ter amanhecido. Às vezes, ele até te dá bom dia. Mas às quatro e trinta? Não é fácil. É a noite que te expulsa de casa dizendo vai trabalhar! É… assim eu ia, naquela época distante, agorinha.

Às cinco já estava pronto. E às cinco e dez, todos os dias, eu me impressionava com a vitalidade de uma senhora e de sua garrafa. Todo santo dia - nem todos, mas é isso que as pessoas costumam escrever para a ênfase pegar - ela chegava na garupa de uma motocicleta alta e pouco barulhenta pilotada por um homem meio calvo no centro da cabeça. Descia calma e, aparentemente, cansada, mas queria aquela descida. Havia de pegar o ônibus que se aproximava, quase orquestradamente, no momento em que ela subia a calçada.

Vestia-se com o mesmo vestuário. Parecia que aquelas roupas tinham um valor sentimental (para onde ela estava indo?). Uma chinela de couro desbotado nos pés desbotados. Usava uma calça fininha, meio roxa, meio escura, com uma simplicidade tão simples que era pleonástica. Para fechar o look, uma blusa verde de mangas curtas que era acompanhada sempre por um crachá que descia de seu pescoço vivido.

E porque estou falando dessa mulher, você me pergunta. Por que estou falando de uma senhora que pegava o mesmo ônibus que eu todos os dias da semana em uma época remota (ou talvez agorinha) da minha vida? A resposta é obviamente óbvia. Ela chegou ao fim da linha e não poderia mais voltar ao começo.

Deu adeus aos dias na terra, mas não queria que ela desse adeus aos meus pensamentos. Por que não me despedir? Será que me sentiria melhor? Não. Não a conhecia. Foi apenas mais um rosto conhecido que desconheço como tantos outros que pegam o mesmo vagão que a gente. Uma mesma condução. Uma mesma direção. Uma mesma vontade. Mas, então, por que ela? Simples. Uma mãe só não ama seu filho depois que ele faz 150 anos! E aquela senhora, vamos chamá-la mesmo sem saber seu nome de dona Sol, amava seu filho, mas ele me parecia escuro como aqueles dias frios.

Era comum chegar na parada, mesmo com o medo prendendo meus calcanhares em casa. Quando chegava, havia sempre duas senhoras conversando sobre os netos à minha frente. E o tempo passava, passava, (fique atento aos sinais), passava. E ela chega. Não! Ela não chegou naquele dia! Onde ela está? Onde ela está? Pego o ônibus. Ela perdeu. Não perdeu? Não. Não perdeu.

Três paradas depois, lá está ela. O filho na moto alta, mas pouco barulhenta havia sido mais rápido que o motorista dando adeus ao começo. Na quinta parada da rota, lá estavam eles. Ela desce da moto. Não há um adeus. Por que eles não se despedem, penso? Por que não há um até logo, meu menino? Meu menino, até mais tarde. Que Deus te abençoe, mãe (era mãe dele. Não podia ser outra coisa).

E como eu sei? Ela subiu no ônibus. Ela conseguiu. E deu bom dia, mesmo no dia escuro. Dona Sol passou a catraca. Dona Sol caminhou até próximo das duas senhoras conversando sobre os netos em um banco perto da parte traseira do ônibus (eu estava um pouco mais atrás). Tive que fazer o café do meu menino, ela disse. Meu menino. Meu menino. Meu menino… isso ficou na minha cabeça a viagem toda. Um meninão quase careca de 40 anos! Por que ele era o menino dela? (Tive que fazer o café do meu menino) Porque ela é mãe. A sua mãe não faria isso? Guarde a resposta. Ela fazia o café do menino dela, mas por que ele não dava adeus? Por que não se despedia? Será que o café foi ruim por 40 anos ou o amargurado era ele?

O silêncio não era pelo barulho da motocicleta. Era tão silenciosa, parecia um vulto. Não era falta de tempo. Tchau, mãe! Tchau, meu menino! O que custava dizer? E se ela e eu morrêssemos naquele coletivo? E se o motorista errasse o caminho? E se fôssemos parar em um lugar distante, longe de um abraço, mas com vontade de abraçar? Por que não se cumprimentavam? Tava guardando um lugar para você, ela dizia quando subia uma senhora muito parecida com ela, pouco depois das cinco e vinte. Era uma voz Sol a dela. Não no sentido da estrela, mas uma voz soldela. Uma voz só dela. Não há como descrever aquela voz, mas eu queria abraçá-la. Queria abraçar aquela voz e dizer olha, tudo bem. Um dia, ele vai dizer ‘tome cuidado no caminho, mãe porque amanhã quero estar com você nele de novo’.

E para onde ela estava indo todos aqueles dias? Para onde ela estava caminhando naquele coletivo? Qual era o rumo certo, o trajeto correto? Não sei. Sabia para onde ia, mas nunca fui ao fim da linha. Ela já poderia ter mais certeza. Então por que não a perguntei? Por que não falei espere um pouco que ele ainda não disse adeus. Ele não estava esperando. Ninguém espera nessas horas, mas essa hora sempre passa. Ela sempre chega. Nunca se atrasa.

Desde então não a vejo mais. Não vejo mais sua garrafa. Não vejo mais seus pés desbotados. Não ouço mais sua voz, a voz soldela. Não escuto a moto silenciosa de seu filho chegar, mas tomara que ele esteja bem. A gente nunca sabe, né? Pode parecer que faz muito tempo, mas nada assim é distante. Você se lembra (ou vai se lembrar). Mas antes que fique só na memória, faça como eu. Desça do ônibus no meio do caminho toda vez que der vontade. Vá para casa. Diga mãe, eu estou aqui enquanto você estiver comigo. E ela vai dizer não se atrase, meu menino, minha menina, mas volte logo. E só então volte para o caminho. É longo esse caminho. É escuro esse caminho, mas clareia. Depois das seis ele te dá bom dia, mas às cinco e dez nunca voltam. Tomara que ele esteja bem. Que ele tenha tido tempo. Que ele, quem sabe, já tenha descido do ônibus antes de subir na moto e dito mãe, também te amarei até você fazer 150 anos! É… talvez ele tenha dito. E mesmo que não, ele sabe hoje que ela ainda continua o amando.


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