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Amém, Oxalá: A reza libertária da capela dos cativos

  • Aléxia Vieira, Emerson Rodrigues e Letícia do Vale
  • 31 de out. de 2017
  • 4 min de leitura

Janelas verdes e piso desnivelado carregam histórias de longas datas. Um amarelo fraco colore as paredes descascadas e pichações completam o design exterior. Assim é composta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada na Praça General Tibúrcio — conhecida popularmente como Praça dos Leões — no centro de Fortaleza.

A diferença entre interno e externo aponta uma forte contradição estrutural: enquanto a falta de manutenção na fachada do templo carrega uma ideia de local à deus-dará, a aparência aconchegante de dentro reforça a concepção de cenário sagrado e de beleza contemplável. O pouco espaço permite a sensação de acolhimento, favorecida por detalhes como vitrais, pinturas e imagens de santos. A madeira range quando pisada, ecoando pelo ambiente e revelando timidamente o peso da resistência.

Segundo a pesquisadora memorialista Leila Nobre, idealizadora do site Fortaleza Nobre, a Igreja foi construída no século XVIII pelos escravos da época. A medida foi uma solução encontrada pelos negros para poderem exercer a fé e rezar à Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos escravos, já que eram discriminados e proibidos de frequentarem os espaços religiosos dos brancos. A primeira versão do templo — uma capelinha de taipa e palha — era tão humilde quanto seus construtores. O esmero pelo trabalho realizado por essas pessoas é notado na conservação de diversos itens originais na igreja, como os sacrários e os altares. Auxiliando os negros, a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos — composta por senhores e escravos — conseguia desde cartas de alforria até sepultamentos dignos, escondidos pelo piso de madeira e estabelecendo o santuário como a única igreja cemitério de Fortaleza. À época, o grupo atuava em vários templos brasileiros que cultuavam a santa.

Restauração e berço do Maracatu

A arqueóloga do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e participante do processo de escavação, Verônica Viana, conta que a descoberta dos corpos enterrados na igreja foi uma verdadeira surpresa. Durante o último restauro, encabeçado pela Secretaria de Cultura do Ceará, em 2001, a Pasta deduzia a existência de uma composição de cerâmica inferior à de madeira. No entanto, não foi esse o resultado encontrado, e logo uma equipe de escavação foi acionada. Ao todo, 24 campas (locais de sepultamento) encontravam-se abaixo do assoalho, além dos esqueletos enterrados embaixo da escadaria frontal.

Entre homens, mulheres e crianças, foram descobertos muitos materiais base para entender os costumes religiosos do século XVIII e XIX. Aprender sobre o processo de transformação social desses períodos e a maneira como a Igreja do Rosário se situava dentro do contexto da Vila também foram pontos positivos da pesquisa. Segundo Verônica, a maioria das igrejas do século XVIII realizavam sepultamentos dentro do próprio espaço.

Além disso, o templo, que começou como capela e já foi até catedral, porta o título de “mãe do maracatu cearense”. As paredes sagradas delimitam um campo no qual o catolicismo praticado no Brasil e as heranças africanas se juntaram em uma mistura de culturas. Uma vez em contato com santos católicos, os africanos os associaram com as divindades da terra natal. Foi o que aconteceu com Nossa Senhora do Rosário, ligada à orixá Ifá devido a uma similaridade entre os colares que ambas carregam. De acordo com Cantídio Brasil, voluntário na igreja, a religião cristã era pano de fundo para celebrações de coroação e cortejos, que saíam do local e percorriam determinados pontos pela cidade. Assim, no dia 7 de outubro, escravos recebiam folga e festejavam como reis e rainhas.

Patrimônio Material do Estado

Recheada de histórias, a igreja é um patrimônio material tombado pelo Estado. Conforme Francisco Veloso, arquiteto do Iphan, a preservação dessas narrativas constrói a memória social da cidade e ajuda na reconstrução do passado fortalezense. “Imagina em um determinado momento não ter mais nada de você. Não ter mais referência de irmãos, de pais, de amigos. Você está só, sem nada, ou então quando chega num processo de Alzheimer, perda da memória. Nós temos que ter uma referência e isso é fundamental”, afirma. O professor de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), Mário Martins, reforça a importância do santuário para a Capital. “A Igreja do Rosário é um patrimônio importantíssimo para pensarmos, por exemplo, as relações dos escravos aqui no estado e dentro mesmo de Fortaleza. Então, ela é um monumento material que está para além da pedra e da cal”, ressalta.

O significado do santuário é, ainda, muito forte para os fiéis que fizeram do espaço o local ideal para derramarem as mais íntimas lamentações e pedidos ao divino. Maria Gorete Lima, 62, frequenta a igreja sempre que pode. Em seu caso, o termo fiel perpassa o sentido religioso e alcança o literal: o templo faz parte da rotina de dona Maria há oito anos. “Eu me sinto muito bem aqui. Você vê que se preserva o antigo, por isso é aconchegante. Não se fazem mais igrejas assim”, conta a vendedora de dindin que desabafa: “Acho que deveriam ter mais cuidado, quem vê de fora até pensa que está abandonado [o santuário]”. Segundo Cantídio, a equipe do templo está esperando a abertura de um edital estadual para conseguir um novo processo de restauro na igreja.


 
 
 

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