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Conversar de dois


Seu Matheuzinhos, com S no final, tinha um Lugarzinho de Doces atrás da parada de ônibus onde, todo dia, um jovem chamado Luís pegava coletivo rumo ao Centro. Diabético, Matheuzinhos calçava uma cadeira de rodas porque já não haviam pés para pisar no chão. Perdeu-lhes quando ainda era atrevido e malcriado com os médicos, que rogavam a ele para que controlasse a glicose e o coração de bebida que tinha. Não controlou e, bem, perdeu parte da perna esquerda, pouco depois o pé direito e, no fim, um pouco da vontade de ver o sol aos domingos.

Há alguns anos, vendia bombons de todos os tipos, gostos (mesmo que todos açucarados) e tamanhos, mas sua vida não era nada doce. Morava numa pequena casa descendo a rua, depois de uma velha banca de revistas, de um mercadinho que já havia vivido seu auge e de um bar que trocava de mãos a cada seis meses. Era uma casa simples, com alguns móveis, duas redes e nada mais. Seu Matheuzinhos teve alguns filhos pela vida, pela serra de Baturité, pelos comícios de interior, mas, ali onde morava, só havia um. Era um menino adolescente que não era seu quando nasceu. Adotado por Seu Matheuzinhos antes mesmo que crescesse, Paulo o ajudava no Lugarzinho de Doces. Não quis pôr a farda de escola quando mais novo, e agora continuava sem farda, se é que a camisa do Ceará, que é a que eu o vejo com mais frequência vestir, possa ser chamada de tal. Pai e filho trabalham juntos todo dia, nos mesmos horários, no mesmo Lugarzinho. Abaixo de si, uma terra que não sofre com sol. Acima deles, uma árvore que os protege também.

Mas, e quanto a Luís? Quem é esse rapaz?

Luís é jornalista atarefado. Seus 23 anos davam-lhe o suporte para que não caísse de cansaço no chão da parada de ônibus, que também era uma calçada um tanto irregular. Repórter do caderno “A cidade de todo dia”, ele cobria a cidade todo dia. Algum acidente, alguém feliz, alguém triste, alguma fatalidade, alguma discordância que levou a um crime, tudo ele cobria. Trabalhava 24 horas, se bobear. Era jornalista atarefado. Buscava as fontes como quem busca água. Nos fins de semana, escrevia uma crônica para o jornal que trabalhava. Não tinha tempo para viver, às vezes. Não conseguia se apaixonar por mais de um fim de semana. Quando conseguia. Quando não tinha plantão.

Em uma manhã de uma sexta-feira da primeira semana de outubro, Luís saiu de sua casa (ele morava descendo a rua) preocupado. Não havia tido nenhuma ideia para sua crônica de sábado e seu editor o ligava, de meia em meia hora, para perguntar se já havia saído em direção ao emprego escravizante. Enquanto caminhava em direção a parada de ônibus, por pouco não foi atropelado (e nem percebeu), já que olhava o celular em busca de inspirações para a crônica que precisava ser escrita. Nada. Sem ideias, preocupava-se tanto que o suor já queria descer pelo rosto e pela roupa social que usava. Tinha que procurar. Digita. Digita. Procura. Procura. A pressão enorme que já não suportava deixar só sobre as costas, tomava conta de sua alma.

Chegou a parada de ônibus. Era o décimo da fila. Não tinha carro, porque não havia ainda tirado tempo para repetir o exame da carteira de motorista no Detran. Duas vezes não passou. E nas outras duas não pôde ir, devido a coberturas que preenchiam seu tempo. Era a parada onde seu Matheuzinhos e seu filho Paulo trabalhavam. Luís nunca parou para comprar bombons. Na verdade, Luís nunca parava. Atarefado demais, mantia a calma por fora e se angustiava por dentro. Profissão ingrata, pensava. Amo tanto escrever, dizia para si mesmo. Mas sempre tem um... mais, seus pensamentos completavam.

Seu Matheuzinhos, naquele dia, também ia ao Centro. Queria resolver a aposentadoria, receber o dinheiro e comprar bombons para o Lugarzinho. Já estava próximo da fila, onde o ônibus chegaria, abriria sua porta do meio e o puxaria para dentro. A agonia de Luís continuava. Vou me atrasar, vou me atrasar, qual história escrevo?, pensava no mais absoluto desespero interno. Olhava o relógio e os segundos corriam como atletas de cem metros rasos. Necessitava de uma história. De alguém que o inspirasse. Alguém com uma história que desse uma crônica. Pesquisava, olhava imagens, via suas crônicas antigas e nada.

O ônibus chegou. Matheuzinhos com suas histórias o avistou de imediato. Luís, em um transe quase psicótico, continuava sem saber que o ônibus havia chegado. Eu, que estava atrás dele, toquei-o no braço para que seguisse a fila, que subia no ônibus já parado à sua frente. Luís não disse nada, mas caminhou em direção ao coletivo. Continuava a olhar o maldito celular em busca de inspiração, de alguém com uma história de vida que desse uma crônica.

Seu Matheuzinhos já subia pelo elevador do ônibus com auxílio do cobrador Paulo, que tinha o mesmo nome de seu filho. Agradeceu o cobrador, quando teve sua cadeira de rodas colocada no lugar reservado para cadeirantes e o cinto afivelado, e disse Tchau, Paulo, ao filho que o observava do lado de fora. Já Luís, subiu ao coletivo, mas esqueceu de tirar o vale-transporte do bolso da pesada mochila que carregava. Perdeu tempo. O desespero interno aumentava os batimentos de seu coração. Sentou-se atrás, a procurar o bendito vale-transporte. As pessoas, assim como eu, passavam pelo cobrador Paulo em uma procissão silenciosa (vez por outra interrompida por um bom dia). Luís, finalmente, achou o vale e passou pela catraca. Não olhou para Paulo cobrador. Ainda em transe, em desespero interno, em busca de alguma ideia, a qual parecia enterrada a milhares de metros abaixo do chão.

Sentei-me atrás de seu Matheuzinhos, que olhava tranquilamente pela janela o outro lado da rua. Não havia mais cadeiras vazias, a não ser a do acompanhante do cadeirante, que Luís, atarefadíssimo, por sorte notou que estava vaga. Sentou-se. A porta do ônibus fechou e a viagem seguiu os rumos de seu itinerário normal. Nunca vi maior contradição em um ônibus do que seu Matheuzinhos e Luís sentados tão próximos como naquele dia. Enquanto um, possivelmente, mergulhava em suas memórias da adolescência, em como era bom jogar bola, correr, ter pés e sentia saudade disso, o outro se corroia por dentro, suava, coçava seu projeto de barba. Luís ainda procurava um personagem, uma história pelo celular. Seu Editor o ligou, mais uma vez, pouco depois que o ônibus saiu do bairro. Estou indo, não vou me demorar, disse o jornalista pelo que entendi.

Mas ia demorar. O engarrafamento no Montese pela manhã é constante. Naquela sexta-feira não foi diferente. Matheuzinhos, acostumado a não ter mais pressa; Luís, acostumado a estar sempre correndo. Dividiam aqueles poucos metros quadrados trancados em seus mundos, até que o vendedor de bombons perguntou as horas ao jornalista atarefado. Não o respondeu. Não havia ouvido. Preocupado demais. Matheuzinhos percebeu o suor no rosto do jovem e o perguntou se estava tudo bem. Luís virou-se. As pessoas, em um ônibus, não fazem muito esse tipo de pergunta.

― Estou bem, eu acho. Só estou preocupado com o trabalho. Obrigado.

― Não há de quê, filho. Posso te ajudar?

― Não sei se pode.

― Do que você precisa?

― De uma história açucarada. Uma história que dê uma crônica.

Foi assim que conheci toda a história de seu Matheuzinhos. Que conheci toda a história de Luís. Que conheci todas as memórias, vontades e erros daqueles dois homens, separados pela idade, pela vida descomum, pelo tempo, pela pressa e pelas coincidências que ainda não os haviam colocado lado a lado. Os outros 35 minutos daquela viagem foram agradáveis para os dois. Luís não foi jornalista atarefado de jornal. Não foi castigado pela pressão de entregar uma crônica. Foi quase um filho, ouvindo o pai contar a história de sua vida. Seu Matheuzinhos não foi vendedor de bombons. Não foi triste como era comum vê-lo nas manhãs de domingo. Foi quase um professor, ensinando mais do que uma matéria de escola.

Quando ia descer do ônibus, pela primeira vez não queria dar adeus ao calor rumo ao ar-condicionado. Queria permanecer ali, sentado, atrás da conversa dos dois. Quando me levantei, olhei de canto de olho e vi os dois rindo, como se a pressa e a calma que guardaram em seus mundos particulares passados, tivessem dado lugar a uma afetividade presente. Desci do ônibus no Benfica, onde estudo, e, enquanto esperava a minha vez de atravessar a avenida, entendi, finalmente, que para se achar histórias devemos vivê-las. Nesse momento, o sinal de pedestres abriu e, mesmo atrasado para a aula, sorri.


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