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A amiga das tardes


À medida que o sol se deita sobre o poente - em sua lentidão tão conhecida - o silêncio ocioso das ruas é rompido pela mansa chegada dos banquinhos de madeira, pelo arrastar de chinelos, pelas vozes suaves e crescentes. O cheiro do café quente salta da cozinha, avança pela sala, pelo corredor porta afora. Ao cair da tarde, tudo adquire nova cor e forma, como se cada pequeno detalhe se adornasse com sua melhor roupa para receber e vivenciar este rito tão cotidiano.

Na pacata rua, pernas trafegam por todos os lados, quase sempre carregando em cada movimento a pressa de viver tão característica de nossos dias. Alguns acenam ao longe, param para uma breve conversa sobre a vida, sobre o que há de mais novo e polêmico nas redondezas....Ah, se caso você um dia queira passar um tempinho em alguma dessas calçadas cheias de vida, saiba de um detalhe: elas não guardam segredos. E, apesar de gostarem de uma fofoca aqui e ali, tão acolhedoras são elas! Te convidam pra sentar, oferecem um café quentinho e uma prosa suave, descompromissada, que facilmente desliza pela boca da noite…

De onde estou vejo o cachorro se refugiar ao pé da cadeira, o gato pular nas pernas do dono (pedindo carinho com um miado cheio de manha): ninguém ousa perder um só segundo desse espetáculo tão frugal e, ao mesmo tempo, tão icônico. Aliás, nada pode passar despercebido ao olhar atento da vizinhança. Nem o tombo da senhora que traz as compras do mercado, muito menos o fulano da esquina com seu novo carro… Nesta hora, cada olhar cria um código peculiar de vouyerismo. E o que as calçadas e as janelas conversam entre si… Ah, só elas sabem!

Saiba que é muito raro passar ileso ao olhar das calçadas. Elas podem até ser apenas um pedaço da casa na rua, mas, antes disso, não deixam de ser uma verdadeira extensão da essência dos seus donos. Por isso, há calçadas de todos os jeitos; humildes ou opulentas, grandes ou modestas. No entanto - quase - todas são igualmente acolhedoras. Olho ao redor e faço um silêncio prolongado, ao pensar em quantas pessoas jamais viverão esse costume. Sim, as calçadas andam solitárias desde que o tempo obscuro se fez, desde que a violência rompeu de forma abrupta o seu fazer cotidiano. Entretanto, ela continua amiga das tardes ociosas, e seu ofício ainda só se torna verdadeiramente conhecido pelos amantes das boas estórias.


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