O folhetim da hipocrisia e do deboche
- Luciano Rodrigues
- 5 de jun. de 2017
- 3 min de leitura

Recife é um berço de grandes nomes da cultura nacional, como Reginaldo Rossi e Joaquim Nabuco. Essa definição lhe é mais do que adequada, uma vez que esta cidade embala seus bebês até crescerem e não caberem mais dentro da cama envolta por grades de proteção e dos limites físicos. Com toda a sua história e sua imponência diante do cenário nacional, Recife é o ventre pelo qual ganham o mundo diversos indivíduos que alcançam notoriedade em diferentes setores da sociedade brasileira.
Nesse contexto, insere-se o pernambucano mais carioca já visto por este país: Nelson Rodrigues. Ele era uma máquina multifuncional - teatrólogo, jornalista, romancista, folhetinista, cronista, dramaturgo e debochado. Sim, debochado, no sentido literal da palavra. Cada frase escrita por esse fanático torcedor do Fluminense continha uma ironia - sutil ou escrachada - que objetivava atingir ao leitor das mais diversas formas. A imponência de sua obra é espelho para a formação de muitos profissionais, principalmente comunicadores.
O cigarro na boca e o olhar boêmio, misturada a sua altivez corporal, conferiam-lhe um ar imponente e maestral. Agarrado a sua fiel máquina de escrever, Nelson fazia com que suas imaginações, tão imorais e nefastas, ao serem transcritas e ganharem traços concretos, se fizessem palpáveis, entendíveis pelo povo. O maior destaque do dramaturgo era tratar, com requintes de folhetinagem e deboche, temas obscuros que perpassavam a sociedade carioca - e por que não dizer brasileira? - entre as décadas de 1950 e 1960, e que a hipocrisia da capital fluminense proibia de ser sequer mencionado em rodas de conversas, como a infidelidade feminina e os preconceitos, sobretudo o de gênero.
Nessa perspectiva, encontra-se o livro “A vida como ela é…”, coletânea de cem contos escolhidos pelo próprio Nelson a partir de sua antiga coluna de nome homônimo no jornal “Última Hora”. Sem nenhuma relação aparente, com acontecimentos e personagens diferentes, as estórias (ou histórias) cruzavam-se no sentido das relações. Fidelidade (ou a falta dela) é fio condutor de quase todas as narrativas que estão na obra.
No que concerne aos contos, uma linguagem adequada à época de sua publicação. Um esmero estético na prosa debochada e surpreendente de Nelson Rodrigues. As palavras adequam-se às ações transcorridas. O engendramento dos períodos e das frases causam uma fixação pela coletânea. É impossível ler apenas um conto em um dia.
Os contos, em geral, curtos, de no máximo sete páginas, revelam muito do que o autor enxergava sobre a sociedade carioca, principalmente sobre a figura feminina. A mulher aqui já adquirira alguns importantes direitos, porém ainda era bastante inferior ao homem. O que é mais salutar sobre as “pequenas” dos senhores distintos é que, assim como eles, elas têm desejos, ânsias, preferências. As damas tão bem delineadas são tão humanas quanto os cavalheiros, rapidamente evidenciado a partir da leitura do primeiro conto.
O que é mais chama atenção nessa obra de Nelson Rodrigues são os seus desfechos. A cada conto, ele nos brinda com uma maestria na quebra da perspectiva e da linearidade desenvolvida ao longo da curta narrativa, com um final que geralmente nos deixa boquiabertos e perplexos com as capacidades humanas de determinadas personagens; contudo, nenhum final soa absurdo ou incoerente. Ao terminar os contos, o leitor é mais que mero passivo, refém da ação do autor; ele constrói seu pensamento com a inventividade do dramaturgo, com gargalhadas estrondosas e debochadíssimas.
O livro fora diversas vezes adaptado para a dramaturgia e, em 1996, a Rede Globo o transformou em telessérie, que foi exibida no dominical “Fantástico”. Grandes atores da casa atuaram nessa fidedigna adaptação da obra do dramaturgo, e a narração impecável dos já falecidos atores José Wilker e Hugo Carvana foram um poderosíssimo empréstimo vocal para essa bíblia da dramaturgia brasileira.
É louvável o pioneirismo de Nelson em escancarar reconhecidas mazelas da sociedade carioca das décadas de 1950 e 1960. Na perspectiva da época, ele rompe com as estéticas clássicas e conservadoras e apresenta um novo olhar sobre as transformações que afetam as pessoas do século XX. Decorridos mais de sessenta anos, essa obra continua atualíssima, com poucas diferenças da chamada “sociedade pós-moderna”. Talvez essa não tenha sido a pretensão de Nelson; um veículo de comunicação de massa, com notícias diárias, deveria atender às necessidades do público consumidor naquele momento. A produção dele foi além: expôs as verdades e brincou com elas, fazendo um brinde à hipocrisia e ao deboche.
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